sábado, 7 de dezembro de 2024

A mulher da janela

A mulher da janela era eu, mas a senhora ao meu lado queria tirar fotos. E fazer vídeos. E ela até era educada, como quando enfiou o braço por cima do meu kindle me impedindo de ler, mas se desculpou. Eu, irritada, me mantive sorrindo, brinquei que era melhor ela filmar o céu do que a mim, ha-ha-ha, que bicho me picou? Quando começou a descida ela abriu a minha janela, que anteriormente ela já havia aberto e depois fechado - sempre se desculpando. Então eu, gentilmente (e putamente porém serenamente), cedi o meu lugar. E ela tirou mais fotos. E eu li o meu livro. E todos viveram felizes para sempre até o final do vôo.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

O pulso ainda pulsa

Entrei no metrô na Avenida Paulista vazio mas fiquei em pé encostada na porta. Segurei no apoio lateral distraída e imersa na minha trilha sonora, mas tirei o fone quando vi que a senhora ao lado sorria e falava comigo: 

- Que lindo esse coração!
- É lindo mesmo né? Acho de uma delicadeza sem fim!
- Verdade, lindo e simples.
- Já foi mais vivo, mais vermelho, agora tá meio destruído do tempo, deve ser pra fazer jus ao meu!
- Mas segue batendo!

Como nunca. Obrigada, Vivian, por me lembrar.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Atenção senhores passageiros

Plena estava eu, descendo as escadas - já que estamos em meia fase e sem elevador, para ir ao aeroporto de carro, porém sem mala e sem chave do carro. Agora me dando conta que estava também sem o carregador do note, e este, tarde demais para buscar! Manchas vermelhas no rosto, pois o creme da bunda foi parar sem querer na cara, e assim partimos apressadas para a última ida a SP do ano. E que ironia, depois de tanta pressa, só será daqui há uma hora e meia, pois o vôo está atrasado! Mas nem tudo está perdido: chegarei lá certamente sem celulite nas bochechas!

domingo, 10 de novembro de 2024

F.G. Bier, 156

Eu morei em 16 lugares diferentes, mas se eu parar e pensar na palavra casa, a da F.G Bier, 156, vai ser a primeira que vai vir na minha cabeça sempre. Ela é especial e aguça absolutamente todos os meus sentidos.

Tem cheiro da comida da mãe, de bolo da vó, de geléia de morango no fogão, do jasmim do pátio, da taipa úmida, de nó de pinho, da gasolina da Agrale, de gelo de flor.

Essa casa tem gosto de panqueca sem recheio, de brigadeiro antes de enrolar, de pão caseiro quentinho, de mate doce com casquinha de laranja, de gemada com banana, de peru assado no Natal e de churrasco no domingo.

Tem o som de grama crocante da geada, dos discos do pai na vitrola, de jogo do Inter na AM, do chinelo da vó batendo no pé, de risadas altas, conversa e gritaria, choros e latidos.

Tem o toque quente da toalha saída da secadora, de lençol térmico tinindo, da manta de crochê, de roseta e raiz de árvore no pé e de grimpa e pinhão na mão.

Ela traz a visão do verde das plantas, das revoadas de morcegos ao entardecer, do dim-dim virando a esquina, da flor que só abre quando vai chover, de céu estrelado, de fogos de artifício do Natal. 

Essa casa é natureza. É camélia, roseira, bougainvillea, pinheiro, copo de leite, lírio amarelo, araucária, azaléia e hortênsia. É pé de araçá e horta de moranguinhos. É sapo, cachorro, aranha, gambá, morcego, tatu bola, minhoca, tico-tico, formiga e bicho cabeludo. E todo mundo que viveu nessa casa, em algum momento virou bicho também.

Essa casa me remete à pessoas que já se foram, desse plano ou da minha vida. Ela me joga na minha infância e eu rolo na grama, brinco no meio da rua, deixo de ser caçula, pego a Kombi, e depois o ônibus; e num piscar de olhos sou adolescente, e pego o carro, e deixo o retrovisor no portão, e choro no quarto; e ela vira minha casa de fim de semana, e depois de férias, até passar a ser a casa dos meus pais, que em outro piscar de olhos viram avós dos meus filhos que correm pela mesma grama que eu rolei.

Essa casa conta histórias boas e histórias ruins e todas fazem parte de mim. Hoje percebo que tudo que aconteceu ali nos últimos 40 anos, remonta quem eu sou. Quem todos nós somos. E que mesmo sem ela, seguiremos sendo.


quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Mentiras

 Hoje, em mais uma noite de raios e trovões, Mel correu pra minha cama. Mas diferente do usual, não voltou a pegar no sono. De tempos em tempos repetia:

- Mãe, tô com muito medo!

[Eu também, meu amor. Da chuva, dos raios, dos trovões, do futuro, do presente, por mim, por ti, pelo mundo, pelas minhas decisões, pelas decisões que não são minhas, da vida, de (quase) tudo]

- Vem cá, me abraça. Não precisa ter medo, meu amor, a mamãe tá aqui.

Ser mãe também é mentir. E cair um pouco na mentira contada pra poder voltar a dormir.

sexta-feira, 24 de maio de 2024

Sem reclamar

Porto Alegre, 05 de maio de 2024.

Depois de 12 dias viajando voltei pra minha cidade após dois vôos cancelados, uma escala imprevista e um trajeto de carro. Durmo, exausta, acordo e finalizo a mudança iniciada antes das férias em meio a chuva e notícias alarmantes. A cidade está um caos mas eu vivo num lugar que não foi diretamente afetado, não posso reclamar. As crianças ficarão sem aulas, mas enfim, foi só isso que mudou, não posso reclamar. Economizamos o que pudemos, mas faltou água, mas tenho casa, luz, não posso reclamar. Doa, ajuda, faz PIX, chora por qualquer coisa, agradece por não ter pelo que reclamar. A chuva não para, o abrigo de cães no gasômetro precisa de ajuda, decido fazer lar temporário, preciso ajudar. Cachorro novo, querido, ansioso, carente, assustado, recebo um cocô no tapete. Tudo bem, é só limpar. A água volta mas o meu aquecedor estraga, tem banho, mas é frio, estou melhor que muita gente, não posso reclamar. Meu cachorro novo se apega muito a mim, tem ciúme dos meus filhos, rosna, ataca, preciso devolver ele, o que faço aos prantos, não consegui ajudar. Os filhos pelos quais devolvi o bichinho sentem falta dele, me precipitei? Fiz tudo errado? Respira, te acalma, e lembra de não reclamar. A filha sente tanto a ausência do cachorro (e sente tanto todo o resto) que faz xixi na minha cama toda. Acordo molhada, a máquina nova só lava, não tenho outro lençol. Lavanderia, loja, lá vai dinheiro, ei, lembra: isso não é nada, sem reclamar. Lavando a louça a cozinha transborda, chamo o encanador: olha, uma pedra entupindo a caixa de gordura. Conserta, paga, não para pra reclamar. Porque enquanto isso a cidade colapsa, e também transborda. Transbordamos todos, sem reclamar.

Porto Alegre, 24 de maio de 2024.

Parece  inacreditável pensar que exatamente há um mês eu saia de férias. Me vi nessa foto hoje e ela parece tão sem sentido ou fora de contexto que parece ter sido tirada em outra vida. Mas nesse dia, nessa outra vida, ela fazia todo sentido. Eu transbordava, cercada de água, mas era de alegria. E não tinha realmente do que reclamar.



terça-feira, 7 de maio de 2024

Enchente


Terça-feira, 07 de maio de 2024, 09:20.

Ernesto Alves, quase esquina Cristóvão Colombo, em frente ao Shopping Total.

Cheguei no domingo a noite em Porto Alegre. Segura. Com casa, água, luz, intenet, cama, comida. Não vi água na rua, mesmo ela estando ali, invadindo a cidade a poucas quadras de mim. Só hoje saí para ir ao supermercado e me deparei com o real cenário da cidade a olhos nus. A água ainda subindo, mais pessoas deixando suas casas, ali, na minha frente. A previsão de mais chuva apavora. E tudo dói. Até mesmo ser privilegiada dói. Fazer um PIX que vai ajudar alguém parece um nada perto de quem perdeu tudo. Encher uma mala de roupas parece muito pouco diante do que vejo tantos outros fazendo. 

Mas essa é a única coisa que cura um pouco toda essa dor. Ver a união de tantas pessoas, fazendo absolutamente tudo que está ao seu alcance, incansáveis. Choro a cada resgate, a cada abrigo preparado, a cada boa notícia em meio ao caos.

Não saber quando isso vai passar dói. Mas vai passar.

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Mudança

Metade é coragem, metade é medo.
Metade põe pra fora, metade guarda aqui dentro.
Metade é calma, metade é aflição.
Metade é certeza, metade é dúvida.
Metade é casa cheia, metade é solidão
Metade é loucura, metade é lucidez.
Metade é cabeça, metade é coração.
Metade é não, metade é sim.
Metade é começo, metade é fim.
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Mudança conta histórias do passado mas no fundo o que quer mesmo é contar com as histórias do futuro.

domingo, 31 de dezembro de 2023

Quer dançar?

 "Aprender a dançar sozinha pra não perder nenhuma música".

Essa frase desenhou meu ano. Pensei tanto no fim de tanta coisa, que me vi querendo mais que nunca "viver tudo que há pra viver". Aprender (e querer) dançar sozinha, não significa dançar sempre sozinha. Segui dançando com filhos, marido, amigos, família. Com quem me deu brilho nos olhos e me tirou pra dançar. Mas mais que tudo isso, dancei comigo mesma. No sul, no sudeste, no norte, no nordeste. A dança da vida, dos sonhos, dos desejos. Olha que achei que nem sabia dançar, mas se perdi alguma música, foram poucas.

2024, seja música pros meus ouvidos, continua embalando minhas danças.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Balanço

 Eu não sei se todo mundo passa por isso, mas eu às vezes transformo coisas simples do cotidiano, que renderiam no máximo uma postagem bonitinha no Instagram, em uma verdadeira jornada de auto conhecimento da minha vida.

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Decidi fazer uma trilha até um balanço que tinha lá no parque onde passamos o final de semana. Longe, caminho pedregulhoso, íngreme, um mini desafio. Sem Internet, logo, sem música, os únicos sons que ouvia era dos bichos, do vento e dos meus pensamentos, o que já dava uma barulheira e tanto. Aquele balanço que parecia não chegar nunca, era um objetivo mas também uma fuga. Consegui ver simbologia em todo trajeto. Nas pedras, nos tropeços, no tombo, no atalho que me levou a um riacho intransponível, até mesmo na libélula que passou sorrateiramente voando ao meu lado e me lembrou do significado de transformação e capacidade de adaptação que ela carrega. Cheguei lá em cima ofegante e li: respire. Obedeci. Pensava eu que o balanço seria apenas divertido, mas ele também se mostrou um tanto assustador e inseguro. Ainda assim, não conseguia mais sair de lá. Não fossem pessoas me esperando e horários a respeitar, talvez tivesse ficado por lá a manhã toda, me embalando e ouvindo. Mesmo contra vontade parei, desci. Ao lado, vi uma daquelas pilhas de pedras equilibradas onde somei mais uma, nada mais simbólico do que conseguir esse equilíbrio. Voltei menos barulhenta, eu acho. Lembrei de quando aprendi que grande parte do barulho que a gente faz, muitas vezes somente nós mesmos estamos ouvindo. Depois da caminhada de volta, já lá embaixo, olhei pra trás e pensei: olha onde eu cheguei! E segui.

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Talvez seja tudo uma grande maluquice. Talvez eu vire coach. Ou talvez eu apenas siga postando no Instagram porque achei bonitinho e guarde em mim o tanto de história que vejo por trás das coisas que eu vejo e vivo por aí.