quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

A menor de todas

Hoje peguei a Melissa com dois bolinhos de papel higiênico na mão. Quando me viu, se envergonhou e tentou esconder. Pensei comigo, só o que me falta essa pirralha já querer fingir que tem peito! Deixei passar um tempo e fui atrás dela conversar, lembrando que a gente é melhor amiga e não tem segredos.

- Tá bom, mamãe, eu não vou mentir. Eu fiz essas bolinhas pra colocar no meu tênis pra ficar mais alta.

Quase derreti. Uma criança linda, esperta, amada por todo mundo, ate estão, na minha cabeça, super bem resolvida, preocupada em ser mais alta. Expliquei que ela não precisava ficar mais alta por nenhum motivo, que era uma bobagem, que não faria bem pra postura dela, e na loucura das manhãs, me preocupei mais em colocar o tênis de uma vez. Ela trocou o papel por duas meias, achando que isso resolveria a questão, e eu prontamente lembrei ela que não podia e fim! 

- Mas mamãe, tu não tá me escutando!

E de repente aqueles olhinhos verdes cheios de lágrimas que imploravam pra ter atenção, me lembraram uma outra guriazinha, que lá pela década de 80 ficava com seus olhos castanhos cheios d'água toda vez que era lembrada que era um palito, um projeto, um esqueleto, uma lombriga mal enchido, entre outros apelidos dados por colegas ou familiares, por ser a mais magra, e que com isso sofria a ponto de fazer dieta para engordar.

Já com tênis nos pés, sem bolinhos de meias nem de papel, peguei ela no colo, olhei lá no fundo daqueles olhos que param o trânsito diariamente e falei:

- Meu amor, tu é linda, independente da tua altura. E independente da tua altura, tu vai continuar sendo essa guriazinha maravilhosa, inteligente, esperta e divertida.

- Mas eu odeio ser sempre a menor de todas...

- Ser a menor em altura não é ser a menor em mais nada além disso, pode ter certeza disso meu amor.

E assim, abracei bem forte a minha pequena filha, a menor de todas, e também aquela pequena Kelen, a mais magricela de todas.

domingo, 9 de fevereiro de 2025

Nescau

"Bom dia, mamãe, faz meu nescau?" ou a variante "Posso ver um pouco de tablet?".

Um despertar eestabelecido invariavelmente entre seis e sete da manhã nos últimos dez dias. Faço um exercício qualquer. Como uma coisa qualquer. Arrumo a mochila, preparo dez tipos de lanches [mesmo sabendo que isso não evitará o ataque ao picolezeiro, ou milheiro, ou açaízeiro, ou aos três]. Vem passar protetor. Já escovou os dentes? Para de se mexer. Meu olho! Não foi no olho! Bora, tudo certo? Coloca o cinto! Cadê o chinelo? Volta e pega o chinelo. Coloca Meu abrigo? Não, Cheerleader! Eu quero Várias queixas! Cantamos, e como, e passado um tempo, chegamos. Pego a mochila, a sacola de lanche, e de brinquedos, a barraca, um filho, dois filhos. Cadê a chave do carro? Na polchete, santa polchete. Armo a barraca. Posso ir no mar? Espera a mãe montar o acampamento. Estico a canga, que em três minutos está tapada de areia e tudo bem, pois não ficarei nem cinco sentada [quem dirá deitada] nela. Mamãe! Tô indo. O mar tá uma delícia! Volta, Melissa, perto do teu irmão. Cuidado, Lucas! Picolezeiro, mamãe! Dois picolés e trinta reais a menos depois, que mais tem pra comer? Passam-se horas em um grande looping. Vão tirar a areia, vamos. Eu nem brinquei! Mais quinze minutos! Desarma o acampamento. Deu, vamos. Ah não. Ah sim. Não é justo. Sobe no carro. Mamãe, coloca... não, agora sou eu que escolho! Ah, essa eu gosto. Abençoada casa. Banho, os dois, subam já! Tiro areia de tudo, estendo tudo, lavo tudo, organizo tudo. Parem de brigar, eu vou subir! A Mel que... não interessa! Desçam já! Mamãe, fome. E sede. Pega água no filtro. E pega uma banana. Não é fome de banana. Faço um lanche. Mais fome. Faço dez lanches. Fo... chega! Alimento as cachorras. Vou correr, não se mexam, só respirem! Voltei, tudo certo? Maldita-bendita tela, nem respondem. Vou na piscina. Vou tomar banho. Vou embora! Quê, mamãe? Estão surdos? Faço a janta. Venham. Limpa a boca. Olha o copo! Lavo a louça. Mamãe, quero colinho. E meu leite. Tô indo. Dou cinco minutos de colo, dorme um, dormem dois, carrego um, carrego dois. Desço, desligo tudo. Rua, Dora. Fecho a casa. Subo. Vou ler. Leio meia página, capoto até o próximo pedido de nescau. Tô exausta e já com saudade. Não exijam coerência de uma mãe.



domingo, 12 de janeiro de 2025

Veraneio


Veraneio - ação de veranear, de passar as férias num lugar agradável, diferente do habitual, geralmente perto do mar.

Passei pela minha adolescência com uma frustração: eu não veraneava em Atlântida. Meu pai, médico, tirava 15 dias de férias e íamos para Florianópolis [quem vê pensa, que tragédia!]. Naquela época, a magia e lindeza da ilha não pesavam nessa cabecinha, eu queria apenas fazer parte das férias dos meus colegas de colégio, e não chegar em março sem ter passado três meses "sozinha" e sem estar presente nas histórias de verão de todos eles.

Anos se passaram até eu finalmente  viver finais de semana e feriados mágicos nas mais diferentes praias de Santa Catarina dando o devido valor. Mas aí, quando me apaixonei por isso, o litoral gaúcho passou a ser preterido.

Demorei mais uns tantos outros anos pra lembrar porque queria tanto estar aqui nos anos 90 e assim curtir de verdade estar no nosso litoral. Pra poder reclamar do Nordestão e das mães d'água. Pra encontrar um conhecido a cada passo. Pra saber a numeração das casinhas dos salva vidas. Pra lembrar que um mar verdinho ajuda, mas que o que faz de verdade um lugar, é quem está contigo nele.

sábado, 7 de dezembro de 2024

A mulher da janela

A mulher da janela era eu, mas a senhora ao meu lado queria tirar fotos. E fazer vídeos. E ela até era educada, como quando enfiou o braço por cima do meu kindle me impedindo de ler, mas se desculpou. Eu, irritada, me mantive sorrindo, brinquei que era melhor ela filmar o céu do que a mim, ha-ha-ha, que bicho me picou? Quando começou a descida ela abriu a minha janela, que anteriormente ela já havia aberto e depois fechado - sempre se desculpando. Então eu, gentilmente (e putamente porém serenamente), cedi o meu lugar. E ela tirou mais fotos. E eu li o meu livro. E todos viveram felizes para sempre até o final do vôo.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

O pulso ainda pulsa

Entrei no metrô na Avenida Paulista vazio mas fiquei em pé encostada na porta. Segurei no apoio lateral distraída e imersa na minha trilha sonora, mas tirei o fone quando vi que a senhora ao lado sorria e falava comigo: 

- Que lindo esse coração!
- É lindo mesmo né? Acho de uma delicadeza sem fim!
- Verdade, lindo e simples.
- Já foi mais vivo, mais vermelho, agora tá meio destruído do tempo, deve ser pra fazer jus ao meu!
- Mas segue batendo!

Como nunca. Obrigada, Vivian, por me lembrar.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Atenção senhores passageiros

Plena estava eu, descendo as escadas - já que estamos em meia fase e sem elevador, para ir ao aeroporto de carro, porém sem mala e sem chave do carro. Agora me dando conta que estava também sem o carregador do note, e este, tarde demais para buscar! Manchas vermelhas no rosto, pois o creme da bunda foi parar sem querer na cara, e assim partimos apressadas para a última ida a SP do ano. E que ironia, depois de tanta pressa, só será daqui há uma hora e meia, pois o vôo está atrasado! Mas nem tudo está perdido: chegarei lá certamente sem celulite nas bochechas!

domingo, 10 de novembro de 2024

F.G. Bier, 156

Eu morei em 16 lugares diferentes, mas se eu parar e pensar na palavra casa, a da F.G Bier, 156, vai ser a primeira que vai vir na minha cabeça sempre. Ela é especial e aguça absolutamente todos os meus sentidos.

Tem cheiro da comida da mãe, de bolo da vó, de geléia de morango no fogão, do jasmim do pátio, da taipa úmida, de nó de pinho, da gasolina da Agrale, de gelo de flor.

Essa casa tem gosto de panqueca sem recheio, de brigadeiro antes de enrolar, de pão caseiro quentinho, de mate doce com casquinha de laranja, de gemada com banana, de peru assado no Natal e de churrasco no domingo.

Tem o som de grama crocante da geada, dos discos do pai na vitrola, de jogo do Inter na AM, do chinelo da vó batendo no pé, de risadas altas, conversa e gritaria, choros e latidos.

Tem o toque quente da toalha saída da secadora, de lençol térmico tinindo, da manta de crochê, de roseta e raiz de árvore no pé e de grimpa e pinhão na mão.

Ela traz a visão do verde das plantas, das revoadas de morcegos ao entardecer, do dim-dim virando a esquina, da flor que só abre quando vai chover, de céu estrelado, de fogos de artifício do Natal. 

Essa casa é natureza. É camélia, roseira, bougainvillea, pinheiro, copo de leite, lírio amarelo, araucária, azaléia e hortênsia. É pé de araçá e horta de moranguinhos. É sapo, cachorro, aranha, gambá, morcego, tatu bola, minhoca, tico-tico, formiga e bicho cabeludo. E todo mundo que viveu nessa casa, em algum momento virou bicho também.

Essa casa me remete à pessoas que já se foram, desse plano ou da minha vida. Ela me joga na minha infância e eu rolo na grama, brinco no meio da rua, deixo de ser caçula, pego a Kombi, e depois o ônibus; e num piscar de olhos sou adolescente, e pego o carro, e deixo o retrovisor no portão, e choro no quarto; e ela vira minha casa de fim de semana, e depois de férias, até passar a ser a casa dos meus pais, que em outro piscar de olhos viram avós dos meus filhos que correm pela mesma grama que eu rolei.

Essa casa conta histórias boas e histórias ruins e todas fazem parte de mim. Hoje percebo que tudo que aconteceu ali nos últimos 40 anos, remonta quem eu sou. Quem todos nós somos. E que mesmo sem ela, seguiremos sendo.


quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Mentiras

 Hoje, em mais uma noite de raios e trovões, Mel correu pra minha cama. Mas diferente do usual, não voltou a pegar no sono. De tempos em tempos repetia:

- Mãe, tô com muito medo!

[Eu também, meu amor. Da chuva, dos raios, dos trovões, do futuro, do presente, por mim, por ti, pelo mundo, pelas minhas decisões, pelas decisões que não são minhas, da vida, de (quase) tudo]

- Vem cá, me abraça. Não precisa ter medo, meu amor, a mamãe tá aqui.

Ser mãe também é mentir. E cair um pouco na mentira contada pra poder voltar a dormir.

sexta-feira, 24 de maio de 2024

Sem reclamar

Porto Alegre, 05 de maio de 2024.

Depois de 12 dias viajando voltei pra minha cidade após dois vôos cancelados, uma escala imprevista e um trajeto de carro. Durmo, exausta, acordo e finalizo a mudança iniciada antes das férias em meio a chuva e notícias alarmantes. A cidade está um caos mas eu vivo num lugar que não foi diretamente afetado, não posso reclamar. As crianças ficarão sem aulas, mas enfim, foi só isso que mudou, não posso reclamar. Economizamos o que pudemos, mas faltou água, mas tenho casa, luz, não posso reclamar. Doa, ajuda, faz PIX, chora por qualquer coisa, agradece por não ter pelo que reclamar. A chuva não para, o abrigo de cães no gasômetro precisa de ajuda, decido fazer lar temporário, preciso ajudar. Cachorro novo, querido, ansioso, carente, assustado, recebo um cocô no tapete. Tudo bem, é só limpar. A água volta mas o meu aquecedor estraga, tem banho, mas é frio, estou melhor que muita gente, não posso reclamar. Meu cachorro novo se apega muito a mim, tem ciúme dos meus filhos, rosna, ataca, preciso devolver ele, o que faço aos prantos, não consegui ajudar. Os filhos pelos quais devolvi o bichinho sentem falta dele, me precipitei? Fiz tudo errado? Respira, te acalma, e lembra de não reclamar. A filha sente tanto a ausência do cachorro (e sente tanto todo o resto) que faz xixi na minha cama toda. Acordo molhada, a máquina nova só lava, não tenho outro lençol. Lavanderia, loja, lá vai dinheiro, ei, lembra: isso não é nada, sem reclamar. Lavando a louça a cozinha transborda, chamo o encanador: olha, uma pedra entupindo a caixa de gordura. Conserta, paga, não para pra reclamar. Porque enquanto isso a cidade colapsa, e também transborda. Transbordamos todos, sem reclamar.

Porto Alegre, 24 de maio de 2024.

Parece  inacreditável pensar que exatamente há um mês eu saia de férias. Me vi nessa foto hoje e ela parece tão sem sentido ou fora de contexto que parece ter sido tirada em outra vida. Mas nesse dia, nessa outra vida, ela fazia todo sentido. Eu transbordava, cercada de água, mas era de alegria. E não tinha realmente do que reclamar.



terça-feira, 7 de maio de 2024

Enchente


Terça-feira, 07 de maio de 2024, 09:20.

Ernesto Alves, quase esquina Cristóvão Colombo, em frente ao Shopping Total.

Cheguei no domingo a noite em Porto Alegre. Segura. Com casa, água, luz, intenet, cama, comida. Não vi água na rua, mesmo ela estando ali, invadindo a cidade a poucas quadras de mim. Só hoje saí para ir ao supermercado e me deparei com o real cenário da cidade a olhos nus. A água ainda subindo, mais pessoas deixando suas casas, ali, na minha frente. A previsão de mais chuva apavora. E tudo dói. Até mesmo ser privilegiada dói. Fazer um PIX que vai ajudar alguém parece um nada perto de quem perdeu tudo. Encher uma mala de roupas parece muito pouco diante do que vejo tantos outros fazendo. 

Mas essa é a única coisa que cura um pouco toda essa dor. Ver a união de tantas pessoas, fazendo absolutamente tudo que está ao seu alcance, incansáveis. Choro a cada resgate, a cada abrigo preparado, a cada boa notícia em meio ao caos.

Não saber quando isso vai passar dói. Mas vai passar.