domingo, 10 de novembro de 2024

F.G. Bier, 156

Eu morei em 16 lugares diferentes, mas se eu parar e pensar na palavra casa, a da F.G Bier, 156, vai ser a primeira que vai vir na minha cabeça sempre. Ela é especial e aguça absolutamente todos os meus sentidos.

Tem cheiro da comida da mãe, de bolo da vó, de geléia de morango no fogão, do jasmim do pátio, da taipa úmida, de nó de pinho, da gasolina da Agrale, de gelo de flor.

Essa casa tem gosto de panqueca sem recheio, de brigadeiro antes de enrolar, de pão caseiro quentinho, de mate doce com casquinha de laranja, de gemada com banana, de peru assado no Natal e de churrasco no domingo.

Tem o som de grama crocante da geada, dos discos do pai na vitrola, de jogo do Inter na AM, do chinelo da vó batendo no pé, de risadas altas, conversa e gritaria, choros e latidos.

Tem o toque quente da toalha saída da secadora, de lençol térmico tinindo, da manta de crochê, de roseta e raiz de árvore no pé e de grimpa e pinhão na mão.

Ela traz a visão do verde das plantas, das revoadas de morcegos ao entardecer, do dim-dim virando a esquina, da flor que só abre quando vai chover, de céu estrelado, de fogos de artifício do Natal. 

Essa casa é natureza. É camélia, roseira, bougainvillea, pinheiro, copo de leite, lírio amarelo, araucária, azaléia e hortênsia. É pé de araçá e horta de moranguinhos. É sapo, cachorro, aranha, gambá, morcego, tatu bola, minhoca, tico-tico, formiga e bicho cabeludo. E todo mundo que viveu nessa casa, em algum momento virou bicho também.

Essa casa me remete à pessoas que já se foram, desse plano ou da minha vida. Ela me joga na minha infância e eu rolo na grama, brinco no meio da rua, deixo de ser caçula, pego a Kombi, e depois o ônibus; e num piscar de olhos sou adolescente, e pego o carro, e deixo o retrovisor no portão, e choro no quarto; e ela vira minha casa de fim de semana, e depois de férias, até passar a ser a casa dos meus pais, que em outro piscar de olhos viram avós dos meus filhos que correm pela mesma grama que eu rolei.

Essa casa conta histórias boas e histórias ruins e todas fazem parte de mim. Hoje percebo que tudo que aconteceu ali nos últimos 40 anos, remonta quem eu sou. Quem todos nós somos. E que mesmo sem ela, seguiremos sendo.


quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Mentiras

 Hoje, em mais uma noite de raios e trovões, Mel correu pra minha cama. Mas diferente do usual, não voltou a pegar no sono. De tempos em tempos repetia:

- Mãe, tô com muito medo!

[Eu também, meu amor. Da chuva, dos raios, dos trovões, do futuro, do presente, por mim, por ti, pelo mundo, pelas minhas decisões, pelas decisões que não são minhas, da vida, de (quase) tudo]

- Vem cá, me abraça. Não precisa ter medo, meu amor, a mamãe tá aqui.

Ser mãe também é mentir. E cair um pouco na mentira contada pra poder voltar a dormir.

sexta-feira, 24 de maio de 2024

Sem reclamar

Porto Alegre, 05 de maio de 2024.

Depois de 12 dias viajando voltei pra minha cidade após dois vôos cancelados, uma escala imprevista e um trajeto de carro. Durmo, exausta, acordo e finalizo a mudança iniciada antes das férias em meio a chuva e notícias alarmantes. A cidade está um caos mas eu vivo num lugar que não foi diretamente afetado, não posso reclamar. As crianças ficarão sem aulas, mas enfim, foi só isso que mudou, não posso reclamar. Economizamos o que pudemos, mas faltou água, mas tenho casa, luz, não posso reclamar. Doa, ajuda, faz PIX, chora por qualquer coisa, agradece por não ter pelo que reclamar. A chuva não para, o abrigo de cães no gasômetro precisa de ajuda, decido fazer lar temporário, preciso ajudar. Cachorro novo, querido, ansioso, carente, assustado, recebo um cocô no tapete. Tudo bem, é só limpar. A água volta mas o meu aquecedor estraga, tem banho, mas é frio, estou melhor que muita gente, não posso reclamar. Meu cachorro novo se apega muito a mim, tem ciúme dos meus filhos, rosna, ataca, preciso devolver ele, o que faço aos prantos, não consegui ajudar. Os filhos pelos quais devolvi o bichinho sentem falta dele, me precipitei? Fiz tudo errado? Respira, te acalma, e lembra de não reclamar. A filha sente tanto a ausência do cachorro (e sente tanto todo o resto) que faz xixi na minha cama toda. Acordo molhada, a máquina nova só lava, não tenho outro lençol. Lavanderia, loja, lá vai dinheiro, ei, lembra: isso não é nada, sem reclamar. Lavando a louça a cozinha transborda, chamo o encanador: olha, uma pedra entupindo a caixa de gordura. Conserta, paga, não para pra reclamar. Porque enquanto isso a cidade colapsa, e também transborda. Transbordamos todos, sem reclamar.

Porto Alegre, 24 de maio de 2024.

Parece  inacreditável pensar que exatamente há um mês eu saia de férias. Me vi nessa foto hoje e ela parece tão sem sentido ou fora de contexto que parece ter sido tirada em outra vida. Mas nesse dia, nessa outra vida, ela fazia todo sentido. Eu transbordava, cercada de água, mas era de alegria. E não tinha realmente do que reclamar.



terça-feira, 7 de maio de 2024

Enchente


Terça-feira, 07 de maio de 2024, 09:20.

Ernesto Alves, quase esquina Cristóvão Colombo, em frente ao Shopping Total.

Cheguei no domingo a noite em Porto Alegre. Segura. Com casa, água, luz, intenet, cama, comida. Não vi água na rua, mesmo ela estando ali, invadindo a cidade a poucas quadras de mim. Só hoje saí para ir ao supermercado e me deparei com o real cenário da cidade a olhos nus. A água ainda subindo, mais pessoas deixando suas casas, ali, na minha frente. A previsão de mais chuva apavora. E tudo dói. Até mesmo ser privilegiada dói. Fazer um PIX que vai ajudar alguém parece um nada perto de quem perdeu tudo. Encher uma mala de roupas parece muito pouco diante do que vejo tantos outros fazendo. 

Mas essa é a única coisa que cura um pouco toda essa dor. Ver a união de tantas pessoas, fazendo absolutamente tudo que está ao seu alcance, incansáveis. Choro a cada resgate, a cada abrigo preparado, a cada boa notícia em meio ao caos.

Não saber quando isso vai passar dói. Mas vai passar.

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Mudança

Metade é coragem, metade é medo.
Metade põe pra fora, metade guarda aqui dentro.
Metade é calma, metade é aflição.
Metade é certeza, metade é dúvida.
Metade é casa cheia, metade é solidão
Metade é loucura, metade é lucidez.
Metade é cabeça, metade é coração.
Metade é não, metade é sim.
Metade é começo, metade é fim.
.:.
Mudança conta histórias do passado mas no fundo o que quer mesmo é contar com as histórias do futuro.

domingo, 31 de dezembro de 2023

Quer dançar?

 "Aprender a dançar sozinha pra não perder nenhuma música".

Essa frase desenhou meu ano. Pensei tanto no fim de tanta coisa, que me vi querendo mais que nunca "viver tudo que há pra viver". Aprender (e querer) dançar sozinha, não significa dançar sempre sozinha. Segui dançando com filhos, marido, amigos, família. Com quem me deu brilho nos olhos e me tirou pra dançar. Mas mais que tudo isso, dancei comigo mesma. No sul, no sudeste, no norte, no nordeste. A dança da vida, dos sonhos, dos desejos. Olha que achei que nem sabia dançar, mas se perdi alguma música, foram poucas.

2024, seja música pros meus ouvidos, continua embalando minhas danças.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Balanço

 Eu não sei se todo mundo passa por isso, mas eu às vezes transformo coisas simples do cotidiano, que renderiam no máximo uma postagem bonitinha no Instagram, em uma verdadeira jornada de auto conhecimento da minha vida.

.:.

Decidi fazer uma trilha até um balanço que tinha lá no parque onde passamos o final de semana. Longe, caminho pedregulhoso, íngreme, um mini desafio. Sem Internet, logo, sem música, os únicos sons que ouvia era dos bichos, do vento e dos meus pensamentos, o que já dava uma barulheira e tanto. Aquele balanço que parecia não chegar nunca, era um objetivo mas também uma fuga. Consegui ver simbologia em todo trajeto. Nas pedras, nos tropeços, no tombo, no atalho que me levou a um riacho intransponível, até mesmo na libélula que passou sorrateiramente voando ao meu lado e me lembrou do significado de transformação e capacidade de adaptação que ela carrega. Cheguei lá em cima ofegante e li: respire. Obedeci. Pensava eu que o balanço seria apenas divertido, mas ele também se mostrou um tanto assustador e inseguro. Ainda assim, não conseguia mais sair de lá. Não fossem pessoas me esperando e horários a respeitar, talvez tivesse ficado por lá a manhã toda, me embalando e ouvindo. Mesmo contra vontade parei, desci. Ao lado, vi uma daquelas pilhas de pedras equilibradas onde somei mais uma, nada mais simbólico do que conseguir esse equilíbrio. Voltei menos barulhenta, eu acho. Lembrei de quando aprendi que grande parte do barulho que a gente faz, muitas vezes somente nós mesmos estamos ouvindo. Depois da caminhada de volta, já lá embaixo, olhei pra trás e pensei: olha onde eu cheguei! E segui.

.:.

Talvez seja tudo uma grande maluquice. Talvez eu vire coach. Ou talvez eu apenas siga postando no Instagram porque achei bonitinho e guarde em mim o tanto de história que vejo por trás das coisas que eu vejo e vivo por aí.

segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Correndo (de) para mim

 "Já falei aqui sobre primeira vez? Há pouco mais de meio ano, comecei mais uma vez a correr. Mais uma vez porque - como muito do que já comecei até hoje, e a lista não é pequena - comecei e parei de correr mais de vinte vezes. Mas desta vez estipulei uma meta: correr minha primeira corrida de rua. E por seis meses, dia sim dia também, com raras exceções, corri. De manhã ou de noite, abaixo de sol ou de chuva, no frio ou no calor.

Domingo, friozinho considerável na beira do Guaíba, pernas de fora e congelando desde as seis e meia da manhã, tive noção do que é participar de uma corrida dessas. E é bom demais. Daquelas coisas boas que chegam a dar frio na barriga. Lembrei que ainda esses dias comentei como eu estava ansiosa ao que me responderam: "mas é só uma corrida!". Como explicar o que significava aquela corrida pra mim? Explicar o que eu passei no último meio ano e o quanto essa coisa de correr me ajudou a superar, esquecer e levantar? Era muito mais do que a corrida. Ela fechava um ciclo, preenchia uma lacuna, correspondia a uma etapa percorrida. Tanta coisa cruzou junto comigo aquela linha de chegada, que só isso explica de onde tirei forças pra correr tão rápido aqueles últimos 100 metros." 

Esse texto foi escrito por mim em maio de 2008, depois de uma separação e de correr a minha primeira prova. 15 anos depois, lá se foram mais de 30 corridas, algumas lesões, muitas paradas. As questões que pairam na cabeça são outras, mas a corrida segue sendo a maior terapia, o melhor ansiolítico. O frio na barriga ainda vem, e correr os últimos 100 metros vai ser sempre uma das melhores sensações de se sentir.

domingo, 17 de setembro de 2023

Gêmeas

Eu sou a ídola master da Mel, posso afirmar isso com absoluta certeza aqui do alto da minha baixa auto estima. Ela me olha com uma admiração que nunca ninguém me olhou. Ela quer ser igual a mim em tudo. Ela me diz diariamente que eu sou linda, que minha roupa é linda, que meu corpo é lindo, que o que eu fiz ficou lindo. Que responsa ser essa pessoa! Hoje eu queria colocar um macacão nela, a louca dos vestidos, e incrivelmente ela topou, mas pediu que eu colocasse também. "Aquele verde", diz ela, falando de um macacão que eu mesma nem lembrava que tinha. E assim fomos escolhendo o resto juntas. Sapatos dourados, prendedor combinando, bolsa no mesmo tom, o mesmo batom, o lápis verde nos olhos. Tínhamos que ficar iguais. Ficamos, ou quase.

- Mamãe, a gente ficou muito linda! E muito gêmeas! Menos os olhos e a voz, né?

Um dia quero me ver com teus olhos, meu amor.

terça-feira, 29 de agosto de 2023

Filhos

Tenho pensado muito nas barreiras que a maternidade impõe, o quanto ter filhos limita e transforma aquilo que éramos antes. Horários e tempos, viagens e programas, escolhas e decisões. Por mais que a gente se esforce e consiga fazer mil coisas, sempre serão eles a definir, de alguma forma, os limites de até onde realmente iremos. A grande sorte é que eles também fazem grandes conexões. De novas amizades a diferentes formas de reviver a nossa infância, são conectores de infinitas descobertas sobre eles e sobre nós mesmos, um estímulo constante que nos leva para outros mundos. Filhos são cercas mas também são pontes.