sexta-feira, 24 de maio de 2024

Sem reclamar

Porto Alegre, 05 de maio de 2024.

Depois de 12 dias viajando voltei pra minha cidade após dois vôos cancelados, uma escala imprevista e um trajeto de carro. Durmo, exausta, acordo e finalizo a mudança iniciada antes das férias em meio a chuva e notícias alarmantes. A cidade está um caos mas eu vivo num lugar que não foi diretamente afetado, não posso reclamar. As crianças ficarão sem aulas, mas enfim, foi só isso que mudou, não posso reclamar. Economizamos o que pudemos, mas faltou água, mas tenho casa, luz, não posso reclamar. Doa, ajuda, faz PIX, chora por qualquer coisa, agradece por não ter pelo que reclamar. A chuva não para, o abrigo de cães no gasômetro precisa de ajuda, decido fazer lar temporário, preciso ajudar. Cachorro novo, querido, ansioso, carente, assustado, recebo um cocô no tapete. Tudo bem, é só limpar. A água volta mas o meu aquecedor estraga, tem banho, mas é frio, estou melhor que muita gente, não posso reclamar. Meu cachorro novo se apega muito a mim, tem ciúme dos meus filhos, rosna, ataca, preciso devolver ele, o que faço aos prantos, não consegui ajudar. Os filhos pelos quais devolvi o bichinho sentem falta dele, me precipitei? Fiz tudo errado? Respira, te acalma, e lembra de não reclamar. A filha sente tanto a ausência do cachorro (e sente tanto todo o resto) que faz xixi na minha cama toda. Acordo molhada, a máquina nova só lava, não tenho outro lençol. Lavanderia, loja, lá vai dinheiro, ei, lembra: isso não é nada, sem reclamar. Lavando a louça a cozinha transborda, chamo o encanador: olha, uma pedra entupindo a caixa de gordura. Conserta, paga, não para pra reclamar. Porque enquanto isso a cidade colapsa, e também transborda. Transbordamos todos, sem reclamar.

Porto Alegre, 24 de maio de 2024.

Parece  inacreditável pensar que exatamente há um mês eu saia de férias. Me vi nessa foto hoje e ela parece tão sem sentido ou fora de contexto que parece ter sido tirada em outra vida. Mas nesse dia, nessa outra vida, ela fazia todo sentido. Eu transbordava, cercada de água, mas era de alegria. E não tinha realmente do que reclamar.



terça-feira, 7 de maio de 2024

Enchente


Terça-feira, 07 de maio de 2024, 09:20.

Ernesto Alves, quase esquina Cristóvão Colombo, em frente ao Shopping Total.

Cheguei no domingo a noite em Porto Alegre. Segura. Com casa, água, luz, intenet, cama, comida. Não vi água na rua, mesmo ela estando ali, invadindo a cidade a poucas quadras de mim. Só hoje saí para ir ao supermercado e me deparei com o real cenário da cidade a olhos nus. A água ainda subindo, mais pessoas deixando suas casas, ali, na minha frente. A previsão de mais chuva apavora. E tudo dói. Até mesmo ser privilegiada dói. Fazer um PIX que vai ajudar alguém parece um nada perto de quem perdeu tudo. Encher uma mala de roupas parece muito pouco diante do que vejo tantos outros fazendo. 

Mas essa é a única coisa que cura um pouco toda essa dor. Ver a união de tantas pessoas, fazendo absolutamente tudo que está ao seu alcance, incansáveis. Choro a cada resgate, a cada abrigo preparado, a cada boa notícia em meio ao caos.

Não saber quando isso vai passar dói. Mas vai passar.

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Mudança

Metade é coragem, metade é medo.
Metade põe pra fora, metade guarda aqui dentro.
Metade é calma, metade é aflição.
Metade é certeza, metade é dúvida.
Metade é casa cheia, metade é solidão
Metade é loucura, metade é lucidez.
Metade é cabeça, metade é coração.
Metade é não, metade é sim.
Metade é começo, metade é fim.
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Mudança conta histórias do passado mas no fundo o que quer mesmo é contar com as histórias do futuro.

domingo, 31 de dezembro de 2023

Quer dançar?

 "Aprender a dançar sozinha pra não perder nenhuma música".

Essa frase desenhou meu ano. Pensei tanto no fim de tanta coisa, que me vi querendo mais que nunca "viver tudo que há pra viver". Aprender (e querer) dançar sozinha, não significa dançar sempre sozinha. Segui dançando com filhos, marido, amigos, família. Com quem me deu brilho nos olhos e me tirou pra dançar. Mas mais que tudo isso, dancei comigo mesma. No sul, no sudeste, no norte, no nordeste. A dança da vida, dos sonhos, dos desejos. Olha que achei que nem sabia dançar, mas se perdi alguma música, foram poucas.

2024, seja música pros meus ouvidos, continua embalando minhas danças.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Balanço

 Eu não sei se todo mundo passa por isso, mas eu às vezes transformo coisas simples do cotidiano, que renderiam no máximo uma postagem bonitinha no Instagram, em uma verdadeira jornada de auto conhecimento da minha vida.

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Decidi fazer uma trilha até um balanço que tinha lá no parque onde passamos o final de semana. Longe, caminho pedregulhoso, íngreme, um mini desafio. Sem Internet, logo, sem música, os únicos sons que ouvia era dos bichos, do vento e dos meus pensamentos, o que já dava uma barulheira e tanto. Aquele balanço que parecia não chegar nunca, era um objetivo mas também uma fuga. Consegui ver simbologia em todo trajeto. Nas pedras, nos tropeços, no tombo, no atalho que me levou a um riacho intransponível, até mesmo na libélula que passou sorrateiramente voando ao meu lado e me lembrou do significado de transformação e capacidade de adaptação que ela carrega. Cheguei lá em cima ofegante e li: respire. Obedeci. Pensava eu que o balanço seria apenas divertido, mas ele também se mostrou um tanto assustador e inseguro. Ainda assim, não conseguia mais sair de lá. Não fossem pessoas me esperando e horários a respeitar, talvez tivesse ficado por lá a manhã toda, me embalando e ouvindo. Mesmo contra vontade parei, desci. Ao lado, vi uma daquelas pilhas de pedras equilibradas onde somei mais uma, nada mais simbólico do que conseguir esse equilíbrio. Voltei menos barulhenta, eu acho. Lembrei de quando aprendi que grande parte do barulho que a gente faz, muitas vezes somente nós mesmos estamos ouvindo. Depois da caminhada de volta, já lá embaixo, olhei pra trás e pensei: olha onde eu cheguei! E segui.

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Talvez seja tudo uma grande maluquice. Talvez eu vire coach. Ou talvez eu apenas siga postando no Instagram porque achei bonitinho e guarde em mim o tanto de história que vejo por trás das coisas que eu vejo e vivo por aí.

segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Correndo (de) para mim

 "Já falei aqui sobre primeira vez? Há pouco mais de meio ano, comecei mais uma vez a correr. Mais uma vez porque - como muito do que já comecei até hoje, e a lista não é pequena - comecei e parei de correr mais de vinte vezes. Mas desta vez estipulei uma meta: correr minha primeira corrida de rua. E por seis meses, dia sim dia também, com raras exceções, corri. De manhã ou de noite, abaixo de sol ou de chuva, no frio ou no calor.

Domingo, friozinho considerável na beira do Guaíba, pernas de fora e congelando desde as seis e meia da manhã, tive noção do que é participar de uma corrida dessas. E é bom demais. Daquelas coisas boas que chegam a dar frio na barriga. Lembrei que ainda esses dias comentei como eu estava ansiosa ao que me responderam: "mas é só uma corrida!". Como explicar o que significava aquela corrida pra mim? Explicar o que eu passei no último meio ano e o quanto essa coisa de correr me ajudou a superar, esquecer e levantar? Era muito mais do que a corrida. Ela fechava um ciclo, preenchia uma lacuna, correspondia a uma etapa percorrida. Tanta coisa cruzou junto comigo aquela linha de chegada, que só isso explica de onde tirei forças pra correr tão rápido aqueles últimos 100 metros." 

Esse texto foi escrito por mim em maio de 2008, depois de uma separação e de correr a minha primeira prova. 15 anos depois, lá se foram mais de 30 corridas, algumas lesões, muitas paradas. As questões que pairam na cabeça são outras, mas a corrida segue sendo a maior terapia, o melhor ansiolítico. O frio na barriga ainda vem, e correr os últimos 100 metros vai ser sempre uma das melhores sensações de se sentir.

domingo, 17 de setembro de 2023

Gêmeas

Eu sou a ídola master da Mel, posso afirmar isso com absoluta certeza aqui do alto da minha baixa auto estima. Ela me olha com uma admiração que nunca ninguém me olhou. Ela quer ser igual a mim em tudo. Ela me diz diariamente que eu sou linda, que minha roupa é linda, que meu corpo é lindo, que o que eu fiz ficou lindo. Que responsa ser essa pessoa! Hoje eu queria colocar um macacão nela, a louca dos vestidos, e incrivelmente ela topou, mas pediu que eu colocasse também. "Aquele verde", diz ela, falando de um macacão que eu mesma nem lembrava que tinha. E assim fomos escolhendo o resto juntas. Sapatos dourados, prendedor combinando, bolsa no mesmo tom, o mesmo batom, o lápis verde nos olhos. Tínhamos que ficar iguais. Ficamos, ou quase.

- Mamãe, a gente ficou muito linda! E muito gêmeas! Menos os olhos e a voz, né?

Um dia quero me ver com teus olhos, meu amor.

terça-feira, 29 de agosto de 2023

Filhos

Tenho pensado muito nas barreiras que a maternidade impõe, o quanto ter filhos limita e transforma aquilo que éramos antes. Horários e tempos, viagens e programas, escolhas e decisões. Por mais que a gente se esforce e consiga fazer mil coisas, sempre serão eles a definir, de alguma forma, os limites de até onde realmente iremos. A grande sorte é que eles também fazem grandes conexões. De novas amizades a diferentes formas de reviver a nossa infância, são conectores de infinitas descobertas sobre eles e sobre nós mesmos, um estímulo constante que nos leva para outros mundos. Filhos são cercas mas também são pontes.

sábado, 10 de junho de 2023

Café terapia

Voltava a pé pra casa e queria um café diferente. Parei num desses muitos pequenos cafés espalhados na cidade e escolhi um café com leite & Baileys & macadâmia & acho que só.

- Oi, esse café aqui tem açúcar?

- Não, nenhum tem açúcar.

- Ela quer saber se na essência tem açúcar. (diz outra mocinha que também atende ali)

- Opa, já fiz essa pergunta aqui pelo visto!

- Ah, na essência tem né, aquele gostinho.

- ?

- Aquele gostinho doce, né?

- É? Não sei, tem essência que não tem açúcar, só se vocês usam xarope. Eu não vou morrer se comer açúcar, mas é que o Baileys já é doce né? Mas tudo bem.

Sigo escolhendo, chego no leite. Normal, vegetal, sem lactose...

- O leite normal é integral?

- Sim.

- O sem lactose também?

- O sem lactose é sem lactose.

- Ah sim, essa parte eu entendi. Quero saber se é semi desnatado ou integral.

- É sem lactose.

- (respira) Certo. E a gordura? Vocês me desculpem querer saber, né? É que eu passo muito mal e posso ter um treco aqui na frente de vocês. Talvez morra. (nem que seja de raiva)

Nesse instante a caixinha do leite Piá surge na minha frente.

- Ah, semi desnatado, que bom. É isso.


Fechei meu pedido. Paguei. Esperei. Recebi.

Não era essência, era xarope, doce que só vendo, vou lembrar da próxima vez. Xarope como eu aliás, né? Apesar de eu não ser tão doce quanto o de macadâmia. Eita mala sem alça, devem pensar, mas custa saber o que vende?

Café com leite & Baileys & macadâmia & provavelmente cuspe.

segunda-feira, 13 de março de 2023

Crise de ansiedade

 Fui agraciada, nas vésperas dos meus quarenta e seis anos, com uma crise de ansiedade. Não é a primeira vez que ela me visita. Da última vez, inclusive, estava certa de que iria morrer de falta de ar. Foi pós-covid, me deem um desconto. Meu irmão, sempre muito prático, me explicou: tu estás com sensação de falta de ar e não falta de ar de verdade (o que bem se via pela minha oxigenação em 100% após corrida até o hospital). Alguns anos antes, meu pai dava um outro nome para as minhas crises: suspirite aguda. Errado ele não estava, já que os sentimentos sempre estiveram à flor da pele nessa pele aqui. Desta vez, quando a crise chegou, sabendo eu que era uma sensação que meu próprio corpo provocava (porém não controlava), passei a me provocar e questionar: o que está me deixando assim? Não pode ser só culpa daquele projeto insano, quantos destes eu já fiz? Já sei, escola nova, filho no primeiro ano, angústias e medos aflorando. Mas será? Eles têm chegado tão felizes em casa. Boletos (incrivelmente) pagos, saúde (sempre sendo checada) em dia e em meio a esses pensamentos, segui enlouquecidamente acordando cedo com crianças na cama, passeando com cachorras, fazendo lanches, checando mochilas, correndo até a academia mesmo com tempo contado, organizando a casa e a vida, zerando notificações de todo e qualquer aplicativo, preenchendo tabelas e planilhas, fazendo mil reuniões, achando espaço para todos os eventos e atividades possíveis, caindo cedo e exausta na cama até que... chegou a me faltar o ar. Seria ânsia de não estar vivendo tão intensamente e daquela forma interessante que almejei há um ano atrás? Ou estaria eu vivendo intensamente até demais para não deixar de ter aquela tal vida interessante almejada? Lembrei da amiga psicóloga que naquela mesma crise pós-covid me disse que eu não estava com falta de ar, mas sim com excesso. Na ânsia por não ter, acabamos por ter demais. Será que vale só para o ar? Os quarenta e seis chegaram, está voltando o ar. Que não me falte tempo para respirar (e nem motivos para suspirar).