Tudo começou ontem. Logo cedo, numa sala de espera, li uma reportagem sobre se livrar de coisas que não servem mais, deixar o velho, dar espaço para o novo. Fui ao shopping logo depois disso e por meia dúzia de vezes quase caí, escorregando no piso por causa do salto da minha bota. Virei o pé, olhei o salto gasto e desgastado (tal qual a própria bota) e entrei na primeira loja que cruzou no meu caminho. Bota preta, promoção, modelo básico, R$59,90. Paguei, sentei no banquinho dentro da própria loja e não tive dúvida: arremessei a bota velha no lixo. Essa foi a primeira das cem coisas que joguei fora em seguida. Hoje pela manhã, a faxina começou cedo:
2. Um rabo quente que deixou tudo que esquentou com gosto de plástico derretido;
3 e 4. Dois aparelhos de mosquitos que não me arriscaria colocar novamente na tomada;
5, 6 e 7. Três pacotinhos guardados há mais de ano. Dentro deles, sementes de girassol que em breve brotarão no meu "quintal";
8, 9 e 10. Posters enrolados saíram do canudo e vão parar na Bella Vista Molduras. Dar uso, também conta. Principalmente quando se trata de uma Monalisa de Bottero que ganhei de presente há 13 anos;
13. O canudo onde estavam os posters;
14. Cartolina e papeis coloridos estão num cantinho para serem doados para alguma escolinha; se em um mês não tiverem destino, lixo;
15. EVA de todas as cores aguardam o mesmo destino dos papéis coloridos;
16. O meu porta canudos do tempo da faculdade, onde já não existiam mais canudos;
15 e 16. Dois pares de chinelos;
17. Uma mochila que ganhei em uma corrida, para colocar os chinelos. (vou adorar quando as organizadoras entregarem o Kit sem mais uma mochila para a minha coleção);
18 a 28. Onze revistas que folheei rapidamente para ter certeza que nunca vou ler de verdade; deixei de reserva a Beyonce estampada na última Nova e na Última Shape; uma semana para estarem lidas, pelo menos o importantíssimo "sexo lacrado" da Nova, se não: lixo;
29. Um puxa saco com os elásticos vencidos;
30. Uma caixa de sucrilhos retrô desmontada foi montada e virou objeto de decoração, também conta;
31. A agenda eletrônica que ganhei num concurso do Serenata de Amor na época em que eu lia Capricho. Com certeza as pessoas ali registradas já mudaram de telefone;
32. Um carregador de pilhas estragado;
33. Um escalímetro com os números apagados;
34. Uma carteira vencida da Unimed (que deve ser substituída por uma “valendo”com urgência);
35. Uma pilha de recibos de táxi que nunca entreguei;
36. Um bolo de notas da minha última mudança que nunca somei;
37. Alguns cartões dos escritórios que não trabalho mais;
38. Um lápis borracha que entregou a minha idade;
39. Um ticket do metrô de São Paulo saiu de um potinho qualquer e foi para minha carteira; agora ele vai ter um pouco mais de chance de ser usado e deixar de ser lixo;
40. Conjunto de pincéis de maquiagem que ganhei no Hortifruti no dia da mulher (na única vez que usei um deles, cortei a pálpebra);
41. Uma pilha de letras de música impressas;
42. Outra pilha de adesivos de propaganda;
43. A pasta com elásticos vencidos onde guardava isso tudo;
44. Um mapa de Gramado onde a rua que eu morava não aparecia;
45. Faturas e contas pagas de 2009 para trás;
46. Um soquete com fio e sem tomada;
47. Uma meia calça branca que um dia seria uma luminária, provavelmente junto com o soquete com fio e sem tomada;
48. Uma caixinha de papelão da Trópico com mensagens tri do surf, coisa que eu não sou há uns vinte anos (se é que aquilo que eu fazia há 20 anos era ser do surf);
49. Um punhado de tic-tacs descascados;
50. Outro punhado de grampos sem ponta;
51. Um papel com preços de tratamentos estéticos que eu nunca vou fazer;
52, 53 e 54. Três chaveiros feitos por mim;
55. Um monte de penas coloridas que vieram do Club Med numa promoção de carnaval;
56. Uma máscara de oncinha versão cor de rosa;
57. Um tubo de ensaio;
58, 59 e 60. Três conjuntos de pulseiras descascadas;
61. Um colar;
62, 63 e 64. Três brincos sem par;
65 e 66. Dois pares de brincos desbotados que já deram tudo que tinham para dar;
67. Um fio de nylon amarelado onde havia um pingente; salvei o pingente;
68. Um prendedor de cabelo que nunca conseguiu prender o meu cabelo;
69. Aproveitando a deixa, camisinhas vencidas;
70 e 71. Duas meias porta celular nunca usadas;
72. Uma nécessaire (as outras 14 que restaram me bastam);
73, 74, 75 e 76. Quatro peças de biquíni avulsas (24 completos me bastam);
77 e 78. Dois sutiãs;
79. Uma capa de bloco de anotações sem o bloco de anotações;
80. Uma niqueleira;
81. Álbuns de fotos vazios, modelo Kodak;
82. Muitas fotos mal tiradas, escuras, cortadas, sem nada para mostrar pra ninguém;
83. Negativos, montanhas deles;
84. A caixa que guardava os negativos;
85. Uma faixa de cabelo;
86. Uma tiara que dava dor de cabeça;
87. Uma fronha velha;
88. Uma meia de dormir que caia do pé;
89. Alguns talheres de plástico;
90. Um vidro de remédio para tosse. Vazio;
91. Um vidro de esmalte. Vencido;
92. Um tirador de cutículas. Sem fio;
93. Um bolo de cartão de visitas. Na verdade todos que estavam numa caixa que nunca precisei abrir;
94. Meu crachá de obra do Barra Shopping. (já inaugurou, né?)
E como a limpeza vai além do lixo, tentei jogar fora também, algumas coisas que ocupam um lugar desnecessário dentro de mim:
95, 96 e 97. Três pessoas, a quem eu não quero mal mas que ficam ainda melhores longe de mim;
98, 99 e 100. Três culpas, que carreguei por anos nas costas e que decidi jogar fora nesta faxina.
Algumas coisas são mais fortes do que eu. A minha carteirinha do Tênis Clube de Gramado (se fosse pela minha foto, nem me deixariam entrar). Um pôster de um labrador preto com o livro "A fugitiva" na boca que peguei quando fui fiscal de vestibular. Todas as fitinhas de Nosso Senhor do Bonfim que recebo e que moram em um pote fechado. Quatro reais do último Boteco Bohemia. Dezenas de brincos, de hippie a perua, que eu imagino um dia usar. Perdi as contas de quantos chaveiros. Tecidos, fitas e missangas a espera do meu dom para o artesanato se manifestar novamente. A bola miniatura do Sr. Wilson. O meu crachá do Projac. Pedras e peças perdidas com formatos diferentes, coisas que definitivamente não servem para absolutamente nada. A caixinha do meu Ipod. Meus desenhos e pinturas do curso que fiz há 25 anos. Dois jogos americanos de crochê feitos pela minha vó. E a coisa mais forte na minha casa: um pé da minha Melissa Preta Campana, o outro se perdeu. Não sei se é o quanto ela me acompanhou, ou se é uma síndrome de Cinderela a espera do príncipe ou talvez uma simples e remota esperança de encontrar o seu par. Ela, como todo o resto que foi mais forte do que eu, vão continuar ocupando seu espacinho por aqui, mesmo que não sirvam para nada. Mas o espaço que eu liberei jogando as outras cem coisas fora imploram por coisas novas no lugar delas. Principalmente no lugar daquelas que tirei de dentro de mim.